Memórias da Pequena África

Memórias da Pequena África

A exposição “Memórias da Pequena África” nasce do encontro entre pesquisa histórica, arte visual e o compromisso com a democratização do acesso à memória afro-brasileira. Instalada no Terminal Gentileza, coração pulsante da mobilidade urbana carioca, esta intervenção artística propõe uma reflexão sobre as camadas de tempo, resistência e criatividade que moldaram a identidade cultural do Rio de Janeiro e do Brasil.

O Terminal Gentileza não é apenas um espaço de passagem. Ele se situa no epicentro geográfico e simbólico da antiga Pequena África, região portuária que concentrou a maior entrada de africanos escravizados das Américas entre os séculos XVIII e XIX. A poucos metros daqui encontra-se o Sítio Arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos, a Pedra do Sal e o Cais do Valongo, este último reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Mundial da Humanidade, território remanescente e testemunha silenciosa de uma das páginas mais dolorosas e, simultaneamente, mais transformadoras da história brasileira.

Escolher este local para uma exposição sobre memória africana e afro-brasileira significa reconhecer que a história não habita apenas museus e monumentos, mas pulsa nos espaços cotidianos por onde transitam milhares de pessoas diariamente. Significa também compreender que a memória é um direito de todos, não um privilégio de poucos.

Os três painéis que compõem esta exposição tecem uma narrativa visual que atravessa séculos, continentes e experiências humanas. Longe de propor uma história linear ou simplificada, este trabalho busca evidenciar a complexidade, a riqueza e a continuidade criativa da presença africana no Brasil.

O primeiro painel convida a reconhecer algo frequentemente apagado dos livros de história: antes da diáspora forçada, o continente africano abrigava civilizações sofisticadas, reinos prósperos e culturas milenares de extraordinária riqueza. Os grandes impérios do Mali, Songhai e Ghana no Oeste africano; os reinos do Congo e Angola na região Centro-Oeste; as complexas organizações sociais dos povos bantos, iorubás, jejes e hauçás — todos desenvolveram sistemas políticos elaborados, tecnologias avançadas em metalurgia e agricultura, filosofias profundas e expressões artísticas refinadas.

Esta ancestralidade vai muito além do passado distante. É a matriz cultural que os africanos trouxeram consigo em seus corpos e mentes, mesmo nas condições mais violentas e adversas da escravidão. É o alicerce sobre o qual se ergueu grande parte do que hoje é reconhecido como cultura brasileira.

O segundo painel conduz ao encontro da violência do sistema escravista, mas recusa-se a ver os africanos e seus descendentes apenas como vítimas. Aqui, são evidenciadas as múltiplas estratégias de resistência que transformaram a dor em força criativa: a preservação das línguas, religiões e tradições; a criação de irmandades e terreiros; a formação de quilombos urbanos; as revoltas e insurreições; e, sobretudo, a extraordinária capacidade de recriar identidades e práticas culturais em território estrangeiro.

O Cais do Valongo, maior mercado de escravizados das Américas, foi também ponto de partida para redes de solidariedade que se estenderam pelos bairros da Gamboa, Saúde e Santo Cristo. Nestes territórios, africanos de diferentes etnias se encontraram, compartilharam saberes e construíram pontes entre suas culturas de origem e a realidade brutal que enfrentavam. Nestas encruzilhadas urbanas, forjaram-se as bases do que viria a ser a cultura afro-brasileira.

O terceiro painel celebra o florescimento cultural que transformou a região portuária no berço de manifestações artísticas fundamentais para a identidade brasileira. Aqui, nos terreiros, nas casas das tias baianas, no Consulado Baiano de Iyá Davina de Omolu, nas rodas de samba da Pequena África, nasceu o samba carioca — síntese genial entre as matrizes africanas e as experiências urbanas do Rio de Janeiro.

Pixinguinha, João da Baiana, Donga, Hilário Jovino, Gentil Marinho e tantos outros mestres não apenas criaram uma nova música: inventaram formas de ser brasileiro, de habitar a cidade, de transformar a margem em centro criativo. O samba, os ranchos carnavalescos, os blocos, as festas — todas estas manifestações carregam em si a memória ancestral africana recriada em chave brasileira.

Esta exposição parte do princípio de que a arte pública tem responsabilidade pedagógica e política. Em uma sociedade marcada pelo racismo e pelo apagamento sistemático das contribuições africanas e afro-brasileiras, tornar visível esta história nos espaços cotidianos é um ato de reparação simbólica e de justiça cognitiva.

Os painéis não são meros elementos decorativos. São ferramentas de educação patrimonial que dialogam com os milhares de usuários do terminal — muitos deles afrodescendentes, moradores de periferias, trabalhadores que sustentam a cidade. Para estas pessoas, ver sua ancestralidade celebrada em um espaço público é experimentar o reconhecimento de sua humanidade integral, de sua história não apenas de sofrimento, mas também de resistência, criatividade e alegria.

A pesquisa que fundamenta esta exposição foi desenvolvida ao longo de mais de quinze anos no Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, espaço dedicado à preservação da memória da diáspora africana no Rio de Janeiro. A parceria com o artista visual Luciano Cian, cultivada ao longo de década e meia de trabalho conjunto, permitiu traduzir a complexidade da pesquisa histórica em uma linguagem visual acessível sem ser simplista, bonita sem ser superficial.

A exibição dos painéis no Terminal Gentileza e a disponibilização do conteúdo no site do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos garantem que esta memória não seja efêmera. Ela se inscreve no território, dialoga com outros marcos históricos da região e se oferece como recurso para a educação de diferentes gerações.

Ao final, “Memórias da Pequena África” é um convite. Convite para que cada pessoa que passa por este terminal reconheça as camadas de história sob seus pés. Convite para que afrodescendentes se vejam como herdeiros de civilizações milenares e criadores de cultura. Convite para que todos os brasileiros compreendam que a história do país não se conta sem a presença, a resistência e a criatividade dos povos africanos e seus descendentes.

Que estes painéis sejam pontes entre passado e presente, entre memória e futuro, entre dor e alegria, entre África e Brasil. Que sejam, como o nome deste terminal nos lembra, gestos de gentileza — reconhecimento generoso de uma história que pertence a todos nós.

Marco Antonio Teobaldo
Curador